Raquel Júnia
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz
Adital
O Conselho Nacional de Saúde tem como missão a deliberação,
fiscalização, acompanhamento e monitoramento das políticas públicas de saúde,
segundo a sua própria apresentação. Entretanto, atualmente, esta entidade
importante na garantia do cumprimento de um dos princípios do SUS - a
participação da comunidade, está com sérias dificuldades de atuação. Esta é a
avaliação de Francisco Batista Júnior, servidor da saúde e ex-presidente do
Conselho Nacional de Saúde e hoje membro da mesa diretora do Conselho.
Para Júnior,
este é o segundo grave momento que o Conselho enfrenta. Ele exemplifica a
situação com acontecimentos das ultimas semanas sobre os quais o Conselho só
tomou conhecimento pela imprensa: o anúncio de R$ 210 milhões para hospitais
filantrópicos, R$2,7 bilhões na construção de 900 novas UPAS e a possibilidade
de construção de um plano de carreira para os médicos do SUS. "São três
informações que vão contra o que temos debatido, acumulado e proposto,
desrespeitando as decisões do Conselho. A gente tem tomado conhecimento através
de terceiros, da imprensa, porque nada disso foi colocado oficialmente",
denuncia.
Júnior conta
que na mesma portaria que libera os recursos para os hospitais filantrópicos,
também há a liberação de R$ 102 milhões para os hospitais universitários, o que
na opinião dele, é extremamente urgente e necessário, entretanto, a liberação
de recursos para os filantrópicos contraria as discussões que tem ocorrido no
conselho e entre os movimentos sociais da saúde. "Ao invés de fazer um
esforço para estruturar a rede pública, o governo continua financiando de forma
vultosa a rede privada, enquanto a rede publica está à míngua", completa.
Da mesma forma, acrescenta, a implantação de novas UPAS vêm acontecendo de
forma desestruturada, com a substituição de outros serviços essenciais, ao que o
conselho se opõe, assim como à carreira estritamente para os médicos, quando há
um acúmulo da necessidade de uma carreira única para todos os profissionais do
SUS. "No mês passado pautamos este tema no Conselho, porque os médicos
corretamente estão empenhados nesta proposta, e o Ministério em nenhum momento
disse que estava fazendo discussão a respeito. Fizemos um bom debate no
Conselho, e mais uma vez reiteramos a necessidade de construir a carreira única
para o SUS. O ministro da Saúde e presidente do Conselho coordenou a reunião e
esse ponto de pauta, inclusive, aí depois somos surpreendidos com a matéria
sobre isso hoje (19/07) no Correio Brasiliense", questiona.
Nesta
entrevista, Francisco Júnior fala sobre o histórico e os desafios atuais do
controle social no SUS, além do momento político que o Brasil enfrenta,
considerado por ele, um dos mais difíceis. A entrevista foi realizada durante o
Seminário da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, em Maceió, de 7 a
10 de junho. No dia 19 de julho, Júnior complementou as informações em uma
entrevista pelo telefone.
A partir da
sua experiência no Conselho Nacional de Saúde e sua militância como trabalhador
da área da saúde, como você analisa os atuais desafios do controle social?
Qualquer
processo político de cunho ideológico, principalmente acontecendo num país como
o Brasil, com as particularidades e toda a história política que tem, sabemos
que é um processo complexo e desafiante, que envolve variantes sociais e
políticas, sobretudo quando tratamos de um tema mais complexo ainda que é a
possibilidade do exercício da democracia participativa, particularmente na
saúde e no SUS. A avaliação que temos sobre esse curto período é que a
participação da comunidade no SUS, que é institucionalizada através dos
conselhos de saúde, das conferências, plenárias, dos conselhos locais e
distritais, sem nenhuma surpresa para nós tem acontecido de forma diversa, em
alguns momentos tem avançado significativamente, em outros, retrocede um pouco.
Tivemos três bons momentos na participação que merecem realce. O primeiro
momento foi a partir da regulamentação da Constituição federal, especificamente
em relação à
lei 8.142 [1990], que trata da participação da comunidade, e que
foi um momento muito importante porque foi a descoberta por parte da sociedade
civil e do movimento social que havia a possibilidade concreta do exercício da
democracia participativa, através da criação dos conselhos de saúde. O segundo
momento foi a partir da segunda metade da década de 90, quando foi criada a
plenária do Conselho Nacional de Saúde, que fez mobilizações importantes em
Brasília principalmente em relação a então PEC 169 que foi aprovada recentemente
como
Emenda
Constitucional 29 . Isso
serviu para deflagrar um processo de articulação dos conselhos de saúde pelo
Brasil todo, em todos os estados da federação. E um terceiro momento importante
foi a partir de 2006, quando nós tivemos aquela primeira eleição para a
presidência do Conselho Nacional de Saúde e todo um processo de aproximação com
os conselhos estaduais e municipais, de fortalecimento e de enfrentamento de
realidades muito distintas. E tem os momentos de retrocesso também. O primeiro
grande momento de retrocesso foi exatamente durante a gestão de José Serra
[Ministro da Saúde de 1998 a 2002, durante a presidência de Fernando Henrique
Cardoso], quando ele praticamente oficializou a decisão dos grandes temas
referentes à saúde nas comissões intergestores bipartite e tripartite e
esvaziou consideravelmente os conselhos. Esse momento que estamos vivendo agora
é o segundo grave momento que a gente enfrenta nessa curta trajetória da
participação social. Eu continuo viajando muito para os estados e posso afirmar
que um quadro que nunca foi fácil, porque a gente tem que admitir que não tem
sido fácil a proposta de consolidação do controle social do SUS, nesse momento
o desafio é muito maior. Hoje estamos vivendo uma situação muito parecida, em
termos de desmobilização e desconstrução, com a situação do período José Serra.
Os conselhos de saúde estão passando por uma profunda crise política e
institucional.
Esse esvaziamento
do papel dos conselhos que você atribui a gestão de José Serra permanecem até a
atualidade?
É difícil
falar isso agora, mas eu tenho que falar até para ser fiel com os fatos. Quando
Lula assumiu a presidência e Humberto Costa o Ministério da Saúde, nós fizemos
importantes transformações no Conselho Nacional de Saúde. Fizemos uma grande
reestruturação ampliando a participação, profissionalizando a estrutura, uma
profunda reestruturação também no que diz respeito à forma de definição das
entidades que o compõem, através da definição de um processo eleitoral
nacional. Esse processo que foi coroado com a eleição do seu presidente pela
primeira vez teve uma repercussão muito importante pelo país e serviu para
colocar um freio naquele processo de desestruturação dos conselhos. De 2003,
quando Lula assumiu, até 2010 foi um momento muito alvissareiro para o controle
social e gerou um clima de redefinição dos conselhos de saúde cujo maior
exemplo foi a 13ª Conferência Nacional de Saúde, que foi a mais participativa
não somente do ponto de vista numérico quanto qualitativo. Só que a partir de
2010 os conselhos passaram a sofrer um duro processo de ataques. Durante 2010,
nós passamos o ano atendendo a muitas demandas do país todo que apontavam para
descumprimento de deliberação de conselho, gestores que diante de uma
dificuldade localizada com o conselho de saúde desmontava aquele conselho e
criava outro através de uma portaria, enfim, o ano de 2010 foi muito difícil
porque a gente percebeu que outra vez estava em curso na nossa curta história
um processo de duros ataques ao conselho.
De onde
vinham esses ataques?
Esses
ataques aos conselhos passaram a acontecer em todas as regiões do país, passou
a ser rotina o desrespeito às deliberações dos conselhos. Nós passamos a
colocar como uma das nossas demandas principais exatamente criar grupos e
comissões para visitar lugares onde estavam acontecendo esses ataques aos
conselhos de saúde. Acho que isso foi consequência da falta de resposta por
parte do Poder Judiciário e do Ministério da Saúde às demandas que nós
colocamos, porque nós tínhamos uma posição muito clara, nós começamos, por
exemplo, a pautar e a questionar muito fortemente estados que estavam
terceirizando a administração do serviço do SUS através de Organizações
Sociais. Houve inclusive uma grave crise no Conselho Nacional de Saúde em
função disso. Nós pautamos a situação nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo,
Pernambuco, Bahia, e exatamente quando estávamos debatendo a Bahia e todos
estes estados que estavam implantando a Organização Social, houve uma crise
violenta entre os gestores e o Conselho Nacional de Saúde. Lembro-me
perfeitamente bem que o Conass [Conselho Nacional dos Secretários de Saúde]
ameaçou sair do Conselho Nacional e a gente disse: ‘ pode sair, vocês têm vaga
institucional, mas se querem sair, saiam!' Óbvio que a gente não queria que o
Conass saísse, mas não poderíamos também nos submeter a uma chantagem colocada
daquela maneira. Então, o processo começou em função do movimento muito forte
que o Conselho Nacional fez de enfrentamento e combate ao processo de
desconstrução do SUS que acontecia pelo país. Quando nós precisamos da
sustentação política e jurídica do Ministério da Saúde e do Judiciário esta
sustentação não aconteceu, e quando aqueles atores perceberam que poderiam
continuar com esse processo, eles realmente institucionalizaram mais fortemente
ainda. Isso se agudizou em 2011, com a eleição do Padilha [Alexandre Padilha,
atual Ministro da Saúde] para presidente do Conselho e com o comprometimento
definitivo da independência e autonomia do Conselho Nacional de Saúde. O que
temos em 2012 são crises no Brasil todo para administrar os conselhos. Então,
hoje talvez seja o mais difícil momento que estamos enfrentando na participação,
porque temos os conselhos em crise, o movimento social em crise e também um
governo que muita gente apostou e eu também apostei que diante de uma situação
como esta teria uma posição diferente, de defesa do controle social, de cerrar
fileiras ao lado dos conselhos de saúde contra o processo de desconstrução da
democracia participativa, e lamentavelmente a gente vê exatamente o inverso. A
atual gestão está lavando as mãos e está deixando a coisa acontecer livremente.
A eleição do
ministro da saúde Alexandre Padilha para a presidência do Conselho está dentro
da legalidade, mas o que isso representa levando-se em conta os objetivos de um
órgão dedicado ao controle social? Vocês esperavam essa eleição?
Quando nós
aprovamos que o presidente do Conselho Nacional de Saúde seria eleito houve
quem defendesse que acrescentássemos que os gestores não poderiam se
candidatar. Taticamente nós entendemos que naquele momento era mais importante
garantir a eleição democrática do presidente do Conselho do que entrar numa seara
que poderia inviabilizar inclusive a proposta da eleição do presidente. A gente
temia que colocando no decreto que regulamentou o processo a restrição aos
gestores de se candidatarem isso pudesse gerar uma disputa jurídica indefinida
sem tempo determinado para acabar, que acabaria inviabilizando a eleição para
presidente. Então, preferimos não colocar isso para não comprar uma briga
jurídica até porque nós tínhamos muito claro naquele período que o gestor
federal, o Ministro da Saúde, na época o Humberto Costa, não tinha a menor
pretensão de se candidatar a presidente. Ele defendia que gestor não se
candidatasse, a mesma coisa foi defendida pelo Agenor Álvares, que assumiu em
substituição ao Saraiva Felipe, e mais recentemente o José Gomes Temporão. Apesar
de ser legítimo, apesar de ter até um certo respaldo legal, não é ético,
politicamente não é correto o gestor assumir a presidência do maior colegiado
de controle social do país, que é exemplo para o resto do país e que tem por
finalidade precípua fiscalizar a gestão. Como é que o cara vai ser presidente
do colegiado e vai fiscalizar a sua própria gestão? É uma coisa muito
complicada para dizer o mínimo. Então, essa preocupação não tínhamos, achávamos
que naturalmente se consolidaria aquela ideia de que independente de estar ou
não no texto, o gestor não se candidataria. Assim, a candidatura do Padilha foi
uma surpresa para nós, porque foi a reversão de um novo conceito político e
ético que estávamos construindo. Nós soubemos que foi uma decisão do governo e
não do Padilha, o governo estava incomodado com o papel que o conselho estava
cumprindo, a verdade é esta. E foi uma decisão do governo na perspectiva de ter
um conselho mais alinhado, domesticado, menos barulhento.
Eu não
acredito em conselho de saúde que não se envolva em polêmica, porque numa
conjuntura como a que nós vivemos, se o conselho de saúde não cria problema, de
duas uma: ou o gestor é perfeito na sua relação com o controle social, ou então
o conselho de saúde está deixando a coisa correr livremente. Como não existe
relação perfeita entre gestor e controle social, então, se o conselho de saúde
não está criando polêmica, não está fazendo enfrentamento, é porque a coisa
está equivocada. E a repercussão do que aconteceu no Conselho Nacional foi a
pior possível, enquanto no período anterior nós tivemos vários estados e um sem
número de municípios que copiaram aquilo de bom que o conselho tinha feito, que
era a sua reestruturação interna, política e administrativa, com a eleição de
Padilha começou a acontecer o efeito inverso, um movimento de gestores querendo
ocupar a presidência do conselho. E mais grave do que isso, o conselho foi
silenciado, dede que o Padilha assumiu você não ouve mais manifestação do
Conselho Nacional a respeito de temas importantes do SUS, a não ser uma ou
outra deliberação sobre uma questão pontual, como foi recentemente o projeto de
lei do José Serra lá em São Paulo, que tentava comercializar 25% dos leitos
SUS. Isso nós denunciamos no Conselho, que aprovou uma recomendação e foi
divulgada, mas uma manifestação formal do presidente do Conselho Nacional sobre
isso não tem. Ou a imprensa não está procurando o Padilha para se manifestar a
respeito destes temas ou ele prefere não se manifestar. Eu aposto na segunda.
Eu já conversei com vários jornalistas que dizem: ‘a gente até procura a
assessoria do Ministro para ouvir a manifestação do presidente do Conselho, mas
ele não se manifesta'. Claro, porque é muito difícil o Ministro da Saúde,
enquanto presidente do Conselho, se manifestar sobre uma questão que tem um
conteúdo político muito forte. Eu, como presidente do Conselho, poderia me
manifestar tranquilamente a respeito do projeto de São Paulo sem que ninguém
pudesse de alguma forma arguir que eu estava fazendo aquilo de forma
político-partidária. Se o Padilha faz isso, a tendência natural é o governo de
são Paulo dizer: ‘é, o cara é PT e tá querendo fazer enfrentamento com a gente
que é do PSDB', enfim, a situação dele é muito complicada, eu reconheço
inclusive, daí fica mais claro ainda porque ele não deveria ter assumido a
presidência do Conselho. O Conselho perdeu sua identidade, sua independência
política, nós já temos uma cultura profundamente autoritária nesse país, quando
uma autoridade se manifesta publicamente a respeito de alguma coisa, existe uma
cultura tão autoritária que algumas pessoas acham que não tem o direito de se
contrapor a uma manifestação de um gestor, por exemplo. Imagine quando esse
cara é presidente de um conselho como o Conselho Nacional de Saúde, é inteligente,
é habilidoso, sabe se colocar, sabe defender as suas propostas.
E como tem
sido a disputa interna?
Na reunião
do mês de maio, por exemplo, o conselho aprovou retrocessos terríveis. A duras
penas nós conseguimos aprovar em 2006, não foi fácil esse debate, um limite de
dois mandatos dentro do Conselho. Isso valia não para entidades, a entidade se
ela for eleita por dez mandatos não tem problema, mas a entidade só podia
indicar a mesma pessoa por dois mandatos, o que para nós é fundamental. A gente
debateu isso com toda a profundidade na perspectiva de fazer um processo de
renovação, de democratizar a participação, e o Conselho Nacional
lamentavelmente retrocedeu, acabou com isso. Hoje voltou a prática antiga de
que qualquer pessoa pode permanecer indefinidamente no Conselho Nacional. Isso
foi derrubado por orientação e participação do Ministério da Saúde. Esse novo
momento político do Conselho Nacional de Saúde é o momento mais duro porque uma
coisa é você ter um Conselho enfrentando grandes dificuldades como no período
em que José Serra era ministro, mas que havia uma capacidade de mobilização no
movimento para se contrapor e fazer esse enfrentamento, outra coisa é você ter
essa dificuldade no governo que o movimento aposta, que boa parte do movimento
tem como aliado. A capacidade de mobilização, organização e enfrentamento fica
comprometida.
Esses
projetos de privatização do SUS, com a entrega da gestão para as Organizações
Sociais, a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares [EBSERH] e
outros aspectos que você citou continuam fortalecidos com esse governo, e como
você está relatando, há um enfraquecimento do controle social. Diante desse
quadro, quais são as perspectivas da luta em defesa do SUS constitucional?
Eu lembro
muito o Gramsci, porque caminhamos com o otimismo da vontade e o pessimismo da
razão e a minha razão está cada vez mais pessimista. Há uma definição
ideológica no governo da Dilma, a gente tem que entender isso se quer fazer o
enfrentamento da maneira correta. O governo da Dilma é um governo que definiu a
posição em relação a isso. Qual é essa posição? Primeiro, é não se contrapor a
quem quiser privatizar das mais variadas formas, então hoje o circo está
liberado, cada um faz o que quer. O Padilha deu entrevista dizendo que não tem
preconceito contra qualquer forma de gestão, como se a questão fosse ter ou não
preconceito e a questão não é essa. Então, temos um governo que fez uma opção.
A opção não é exatamente uma Organização Social, mas é semelhante, a única
diferença é do ponto de vista administrativo porque o serviço permanece sob a
responsabilidade do Estado, enquanto a OS é de um ente privado que presta
serviço ao estado. A EBSERH, a Fundação Estatal de Direito Privado, a
subsidiária da Fiocruz são Organizações Sociais só que permanecem sob a
responsabilidade do Estado. É uma diferença importante? É, não dá para entender
de outra maneira, porque seria falsear o debate. Então, estou dando razão a
quem defende que a EBESERH, as fundações e a subsidiária são públicas, é
verdade, pertencem ao estado, mas as possibilidades de apoderamento e
utilização privadas que a OS tem, a Fundação, a EBSERH e a subsidiaria também
têm. Para nós esse é o grande problema, sem falar que é a possibilidade de
desconstruir o nosso objetivo histórico que seria construir no Brasil, dentro
de um país capitalista, uma saúde com viés socialista. E uma saúde com viés
socialista significaria uma saúde isenta da intervenção de partidos, governos e
grupos privados, significaria uma saúde absolutamente como uma política de
Estado e não de governo. Nós temos uma contradição de fundo, temos na
Constituição Federal que saúde é uma política de Estado e na prática um SUS que
é política do governo que está naquele momento exercendo a sua função, cada
governo se acha no direito de assumir e fazer o que acha mais correto,
inclusive destruir o que foi feito anteriormente que por ventura tenha sido
positivo. Então, não vejo como nós, do movimento social, podemos contar com o
governo numa possível aliança contra a privatização da saúde.
Então, já
que não dá para contar com o governo, como potencializar essa mobilização?
Quando o
governo era do PSDB em aliança com os setores mais conservadores a gente
conseguia uma unidade considerável do movimento social no enfrentamento a um
projeto privatizante, então, por mais difícil que fosse o enfrentamento ao
governo, conseguíamos um movimento mais unificado. Hoje não estamos conseguindo
mais fazer isso, tem setores que até um tempo atrás cerravam fileiras conosco e
agora estão do lado da proposta do governo. Ontem eu estava no
twitter e
fiz um comentário a respeito de uma notícia sobre os médicos de Portugal que
resolveram fazer greve porque foi contratada uma empresa privada para prestar
serviço ao sistema público. Fizeram a greve contra esse processo entendendo que
isso inviabilizará o serviço público, é obvio, o SUS no Brasil está
inviabilizado por isso. E aí eu
twittei: ‘enquanto isso no Brasil, os
médicos estimulam'. Aí um companheiro da Federação Nacional dos Médicos
respondeu alguma coisa nesse sentido: ‘ei,
peraí o grande responsável
por isso é o governo, não temos participação nisso'. Mas qual o movimento de
greve que as categorias profissionais da saúde fizeram no Brasil contra a
privatização do SUS? Qual a greve feita pelas categorias da saúde contra a
intermediação de mão de obra e serviços privados no SUS? Nenhuma. É claro que
aí vem um debate mais complexo, esse quadro é consequência do projeto
neoliberal que estabeleceu uma nova ordem trabalhista no país de precarização
da remuneração e do trabalho, do desemprego. Hoje tem muita gente formada, e há
muitos profissionais que se submetem a qualquer emprego, seja ele terceirizado,
precarizado, o que for, então, hoje quem quer precarizar tem uma facilidade
muito grande porque encontra mão de obra barata no mercado. Não dá para contar
também com o poder judiciário, que às vezes que foi provocado não deu a
resposta que a gente esperava que desse. A maior prova é a Adin das OS [
Ação
Direta de Inconstitucionalidade 1923/1998], cujo relator é o Ayres Brito [ministro do STF] em quem a gente
apostava e apresentou um voto absolutamente insuficiente para dizer o mínimo.
Nós só temos realmente uma esperança e uma alternativa, que é o movimento
social continuar esse crescente processo de mobilização política. Mas para isso
temos que nos comunicar melhor com a população, temos que mostrar como ela está
sendo afetada diretamente pelo processo de privatização. A população não
consegue entender que a dificuldade que ela tem de acesso aos serviços do SUS é
consequência da privatização. Os privatistas usam um discurso muito
oportunista: ‘ah, o povo não quer saber se o serviço é privatizado ou não, quer
saber se o serviço está aberto'. E pior que é verdade, diante da carência que a
população tem, o que ela não sabe é que aquele serviço está custando um preço
tão elevado que acaba comprometendo o funcionamento da rede e a abertura de
outros serviços que poderiam estar atendendo a mesma população. Estamos pecando
nesse diálogo com a população, temos que ser mais convincentes, e ter mais
argumentos.
Com muita
frequência a população assiste a reportagens denunciando atendimentos precários
no SUS, sem que, no entanto, haja uma contextualização desses problemas nas
mídias hegemônicas, ao mesmo tempo em que há uma construção dos planos de saúde
como objetos de consumo. Como então fazer esse diálogo com a população? Com que
instrumentos?
Temos que
fazer isso no dia a dia. Eu estou participando de um movimento liderado pelo
Ministério Público com a participação da OAB, da Advocacia Geral da União, de
conselhos de categorias profissionais, um movimento suprapartidário para
debater os caminhos para a saúde lá no meu estado, o Rio Grande do Norte. Na
ultima reunião que participei eu falei: ‘vamos sair do ar condicionado e vamos
para os serviços conversar com a população, vamos dizer para o povo porque ele
está passando por aquilo'. Porque para explicar didaticamente mesmo, tem que
ser no corpo a corpo, na verdade temos que usar todas as formas de comunicação.
Estou convencido de que a gente passa por um dos mais difíceis momentos da
nossa história no que diz respeito ao aspecto ideológico. Foram muitas gerações
que lutaram, que fizeram o que puderam para elegermos no Brasil um governo que
pudesse começar a transformar as estruturas desse país, e a gente conseguiu
eleger o governo do Lula com essa perspectiva, sabendo da difícil correlação de
forças, sabendo dos desafios que tínhamos pela frente, sabendo que ninguém
havia conseguido o poder, mas a gente sabia que era um processo que estava
sendo construído. Agora, passados dois governos do Lula e a metade do governo
da Dilma, a gente percebe que muita coisa foi feita, não dá para dizer que o
Brasil hoje é o mesmo país que era em 2002, o Brasil hoje é outro sob o ponto
de vista do emprego, de algumas questões importantes principalmente de combate
à pobreza e de inserção de pessoas no mercado, mas lamentavelmente esses anos
serviram para que nós tivéssemos a clareza de que o governo adotou uma opção
ideológica que vai causar um prejuízo incomensurável do ponto de vista
ideológico para a sociedade brasileira. Porque em algum momento esse grande
mote que o governo elegeu de inserção no mercado, de tirar gente da pobreza e
inserir no mercado, se esgotará com certa facilidade. O que está acontecendo é
que as pessoas estão saindo da pobreza, estão conseguindo emprego, renda, mas
não estão conseguindo o que seriam elementos básicos de um processo de
construção de cidadania plena. Então, vamos supor, hoje eu consigo melhorar a
minha renda, mas como estou dessintonizado, para não dizer alienado ideológica
e politicamente, a primeira coisa que eu faço é correr para comprar um plano de
saúde. Primeiro porque eu tenho certeza de que o SUS não atende a minha demanda
mais geral e segundo porque eu estou convencido ideologicamente pelo governo de
que o correto é procurar um plano de saúde, é isso que o governo discursa, é
isso que eu ouço na grande mídia.
Isso está
gerando um prejuízo muito grande para o país, porque nós pensamos num governo
que conseguisse não somente tirar gente da miséria, da pobreza, melhorar o
salário, distribuir renda, mas que fundamentalmente começasse a mudar as
estruturas desse país na perspectiva da cidadania plena e a gente não viu
nenhuma das grandes reformas que são necessárias nesse país. Não fizemos a
reforma tributária, não houve reforma política, não houve reforma sindical. O
prejuízo disso é muito grande porque até o movimento social acreditar que uma
nova proposta transformadora vai realmente transformar vai dar muito trabalho.
E esse modelo vai se esgotar, o capitalismo tem limites na capacidade de
inserção no mercado e na sociedade, e na primeira crise que nós começarmos a
enfrentar, a população que não tem votado ideologicamente, tem votado pelo
bolso, vai tranquilamente votar num novo candidato que apareça aí como sendo o
grande salvador da pátria, o grande moderno na gestão, mesmo sendo de direita
ou de centro, não interessa. E aí é obvio que será muito pior, se com um
governo que tem algumas identidades conosco nós estamos passando o que estamos
passando, imagine um governo mais conservador, flagrantemente de direita. O
exemplo mais recente é o Chile, onde a Michellet Banchelet fez todo um governo
discursando que era de esquerda, mas o que ela fazia era o que a direita faz
normalmente. Na eleição, os chilenos decidiram: ‘se é isso aí é um governo
socialista, então vamos votar no outro porque o outro pode ser ou a mesma coisa
ou um pouco melhor'. Esse é o risco que corremos no Brasil mais cedo ou mais
tarde.
E como
garantir a sobrevivência do SUS nesse quadro?
Nessa atual
lógica que vem sendo estimulada na saúde pelo governo da Dilma, o SUS está
praticamente esgotado, não tem condição de crescer muito mais, mas o SUS é tão
poderoso enquanto proposta histórica, que mesmo sendo violentamente agredido,
ele consegue sobreviver, porque sob o ponto de vista conceitual ele é
fantástico. Então, é como se fosse um doente grave, mas ele tem uma força
interior tão potente e tão violenta que mesmo com a doença grave que o assola,
ele consegue resistir, então é muito difícil dizer: ‘ah, mais dois anos e
acabou o SUS', mas com certeza com esse modelo atual o SUS não tem perspectiva
de avanço e será sempre um sistema como esse que temos acompanhado, que
consegue fazer um serviço interessante, mas com mazelas e cicatrizes profundas
que não conseguem ser tratadas convenientemente.
ADITAL